Demônio Sagrado

Coletânea: Contos Exuvianos
Ela foi enterrada pelo irmão. Sim, e foi a própria quem pediu. Não aguentava mais aquela danação que corrompia sua alma e destroçava seu corpo. Cada feita era pior, toda vez que acontecia. Quanto maior era aquela a dor, mais fome ela precisava controlar. Era um apetite que a deixava com anseios perversos. Estes sentimentos lhe faziam pensar em coisas ainda incompreensíveis.

Entretanto, o pior de tudo era não conseguir desvendar o motivo dela ter voltado do mundo dos mortos. Tampouco não ter seguido este curso novamente. A mensagem que lhe fora dita quando estava decaindo nas brunas do além não foram suficientemente decifráveis. Então a única coisa que lhe fazia sentido era o desejo de proteger sua família, ou o que restou dela, pois a crueldade de um monstro lhe deixara marcas para sempre... E até depois do sempre.

Mataram meu pai no instante depois que ele me viu morrer pela primeira vez. Minha mãe já havia me abandonado quando nasci. Apenas meu querido irmão sobreviveu e foi ele quem esteve comigo nos momentos mais difíceis, até mesmo na minha segunda morte. Ele conseguia ouvir e sentir minha presença graças a sua inocência de criança, mesmo sendo já quase um adulto.

Eu era a caçula, mas precisava sempre agir como o irmão mais velho que defende seu irmãozinho nas piores situações. Eu lhe prometi isso e talvez seja essa a força que me trouxe de volta pela primeira vez. Eu só não entendo o motivo de estar ainda viva, já que esvaeci em fraqueza por não ter cedido à fome do pecado. Tento não abrir os olhos e nem sair deste túmulo. Estou me esforçando para permanecer deitada, com esperança de que minha partida ainda vai chegar. Não quero passar por tudo aquilo de novo... Acho que não resistiria.

† † †

― E aí, noviço rebelde, está pronto pra entrar pra gangue?― Cara, eu já pedi pra tu não me chamar assim... ― explicou após saltar o muro.
― Já está amarelando? ― imitou uma galinha a cacarejar.
― Não estou com medo! É que eu nunca tinha entrado aqui, só isso...
― A galera vem sempre pra cá. Você tem até sorte, sabia? Se o pessoal não tivesse aceitado tu fazer esse batismo só comigo, você não estaria tão de boa como agora.
― Sorte, né? Sei não heim... Cada vez mais acho que nada disso faz parte do teste... Tu deve ta é só me enrolando pra sacanear...
― Você é um medroso! É por isso que eu fui convidado pra entrar pro grupo e você não.
― Como assim “eu não”? Você me disse que...
― Sim, cara, sim... ― tentou se explicar impaciente ― Eu quis dizer que eles me convidaram. Já contigo está sendo diferente, por que tipo, eles não confiam ainda em você por isso tem que ter um teste pra entrar na turma deles, saca?
― Conversa fiada... ― deu de ombros ― Fale sério, conte a verdade... O que tu ta aprontando comigo?
― Continue andando, seu medroso. Vamos por aqui que é mais perto.

Os dois jovens continuaram caminhando. Um bastante desconfiado do destino e outro excessivamente convicto do que queria fazer.

― Putz, tem um monte de garrafas quebradas por aqui, quase pisei em um caco. Uns maços de maconha ali, seringas descartáveis... que caminho é esse?
― Vê se cala a matraca aí... Tu quer participar ou não? Venha me ajudar aqui a pegar umas ferramentas...
― Ferramenta pra quê? O que tem aí embaixo dessa lona?
― Você é muito chato, ta louco!? Se ligue, vou jogar uma pra ti, segura! ― lançou para o amigo.
― Quase me sujou, seu puto... Ei, isso é uma pá! Pra quê diabos eu quero uma...
― Quieto, quieto, quieto... Já estou vendo daqui... Olhe, aquele monte de areia e folhas ali... É uma cova, só que mal enterrada...
― Ei! Êpa...
― Cara, nem comece! Pare de choramingar... Não adianta mais, já chegamos até aqui, agora que começa o desafio.
― Não, não vou fazer nada do que você ta pensando não...
― Vai sim! Ou então vou meter a pá em sua cabeça e depois te jogar na mesma cova! Vamos, comece a cavar... Com certeza alguém que não foi o coveiro enterrou alguém por aqui ― sussurrou essa última frase.

Não, por favor, não! Está acontecendo de novo... Eu não quero sair daqui, não quero... Preciso morrer em paz! O que eu fiz pra merecer isso? Por favor, não, não...

― Velho, que área é essa? Ainda estamos no cemitério?
― Mais ou menos. É nesta parte aqui que são enterrados os indigentes, drogados e tal... É tipo uma desova, ta ligado? A gente vê sempre uns gangsteres poderosos jogarem corpos nessa região.
― Sei... Mas tipo, o que devo fazer? O que isso tem a ver com o teste?
― O desafio é desenterrar um corpo, ué! Aí a gente tira uma foto e mostra pros caras ― argumentou empolgado ― Tomara que seja uma prostituta... ― descuidado, deixou escapar em tom audível esse devaneio.
― Ei... Opa! Cara, não me diga que... Maluco, você que é o maníaco do cemitério? É você! Sim, cara, é você! É por isso que... ― argumentava assustado e se afastando do amigo até ser interrompido.
― Cala boca, sua puta medrosa! Você já segurou a pá e deixou umas digitais aí... Já tem marcas do seu tênis por todo o cemitério. O melhor que você pode fazer agora é me ajudar a desenterrar aqui e depois pode ir embora. Deixa o resto comigo...
― Mano... Assaltar o povo na rua, roubar casas e tal, dá pra passar, é até maneiro, mas essa parada aí, cara, to fora. Isso é doença, parceiro! Se descobrem isso, tu vai preso e ainda vai virar mulherzinha na cadeia. Tu já tem mais de 21, saca? Vai pra uma prisão bem longe daqui... 
― Fica de boa aí, mano! Termine o serviço aqui comigo que vai ficar tudo de boa. Ninguem vai saber de nada. Nem eu e nem você, manja? Se não vai ficar mal pra tu...
― Pra mim não, brother... Vai ficar mal é pra tu. ― murmurou já se preparando pra fugir.
― Pare! ― apontou uma arma ― É, cara, eu agora só ando armado... Gostou da surpresinha? Se você correr eu vou atirar ― começou a falar de forma soletrada e dando alguns passos em direção do alvo ― E depois que tu cair morto, sabe o que vou fazer? Vou te enfiar a pá... ― gargalhou ― vai ser mó barato amanhã a galera ver seu corpo com o rabo pra cima...

Não! Não façam isso! Fujam! Vão embora! Eu não vou conseguir, eu não vou conseguir dessa vez. Dessa vez não...

E então os dois jovens cavaram madrugada adentro. O tempo passava e a neblina já molhava seus corpos. A terra já úmida afundava com o peso dos seus pés, enquanto ficava cada vez mais difícil a escavação. Para um deles aquela dificuldade só aumentava a ansiedade em forma de excitação, enquanto outro estava prestes a ser derrotado pelo cansaço.

― Cara, vamos embora daqui, isso não vai acabar nunca...
― Já está quase lá! Continue cavando!
― Não vai dar... ― parou por um instante e disfarçou, pois lhe veio a mente que a chuva fina que começara a cair poderia apagar suas digitais e o percurso de suas pegadas pelo chão do cemitério ― A gente vem amanhã e faz o serviço, eu prometo que não vou falar nada a ninguém...
― O que foi? Está tentando me enganar? ― enxugou os olhos umedecidos e largou a pá em busca de seu revólver.
― Não, não, é que... Ei, tem algo se mexendo aí atrás de você!?
― Sério, mano? ― questionou decepcionado ― Você tá prestes a tomar um tiro na fuça e ainda vem com esta pegadinha tão manjada? ― engatilhou a arma ― Tu merece é morrer mesmo por achar que sou trouxa!

Nu e pálido, um corpo foi surgindo, se erguendo do fundo daquele sepulcro. Seus olhos trêmulos pareciam lutar contra seu próprio desejo de abri-los. Lábios foram se delineando e tornando-se corados como sangue. A chuva aumentava enquanto seu corpo se banhava, limpando toda a terra úmida sobre sua pele, ficando aparente um belo corpo de uma jovem mulher. Cabelos negros azulados como as profundezas do mar ou, quiçá, da escuridão de onde pode ter vindo aquela deusa das trevas.

Já com o alvo em sua mira, o garoto enfim sentiu aquela presença misteriosa pouco antes de atirar, evitando assim o disparo. Ele virou-se vagarosamente, cada vez mais, conforme o clima ameaçador que lhe ansiava. Ambos ficaram estarrecidos, não só pela situação fantasmagórica de terem em sua frente um ser inexplicavelmente sobrenatural, mas pela beleza hipnotizante que aquele corpo feminino expressava. Mas esse cenário mudou logo que a pele daquela garota começou a se alterar. Marcas foram aparecendo continuamente e formando rachaduras, cada vez mais espessas e prestes a rebentar.

Quando o semblante enigmático daquela mulher mudou para uma expressão de dor, ambos os jovens finalmente se deram conta do perigo que se encontravam e então ameaçaram correr. No entanto um estampido quando eles já estavam de costas ecoou nos seus tímpanos de uma forma tão sofrível que vieram a cair de joelhos com tanta dor. O corpo da garota parecia haver explodido, mas logo outro som viria a castigar mais uma vez os dois adolescentes.

Um gemido agudo que telepaticamente fez ambos se virarem e encararem aquela criatura, que agora já estava ensanguentada, surgindo do interior do antigo corpo. Eles assistiam, paralisados, uma nova mulher rasgando a velha pele, seca e quebradiça. Foi deixando aquela casca cair sobre o chão enlameado, erguendo-se com um semblante agora não mais sedutor e uma postura agressivamente animalesca.

― Não consigo me mexer! ― reclamou um dos garotos.
― O que você quer!? ― gritou amedrontado o que estava armado.
Quero você...

Antes que reunisse forças para mirar seu revólver, o jovem recebeu violentamente todo o peso do corpo daquela fêmea sobre seu peito, e quando bateu as costas no chão molhado, já estava fadado à morte com uma intensa mordida no pescoço que quase o decapitou. Debruçada sobre o rapaz, a garota devorava-o insaciável. Carne, órgãos e vísceras, enquanto o outro nada parecia poder fazer. O pavor lhe roubara as forças de levantar-se da lama e correr. Foi quando então, ainda sobre o corpo do amigo e agora com uma aparência menos voraz, um rosto jovial o encarou. Seus olhos vermelhos esverdearam de repente.

Fuja... Agora! ― quase como uma súplica, a mensagem foi assustadoramente clara, mesmo que de forma instintiva.

O garoto correu como nunca antes. Entre tropeços, esbarrões, quedas e arranhões. Em meio a lama e lápides, ele fugiu sem olhar pra trás. Pulou o muro do cemitério de um modo que só o medo é capaz de providenciar e explicar. Seu corpo arranhado e dolorido proveniente dos obstáculos só começou a doer quando o fôlego já começava a ficar insuficiente. Seguiu para o centro da grande Arch City, no intuito de evitar ao máximo ficar sozinho novamente.

― O que vai ser hoje? ― perguntou um traficante, abrindo um lado do casaco e mostrando várias seringas e outros apetrechos na parte interna do traje.
― Olá, bonitão... ― flertou a prostituta, enquanto ele continuava caminhando sem sanidade suficiente pra prestar atenção em tantas propostas e investidas pecaminosas.
― Ei, moleque, pra onde pensa que vai? ― questionou alguém com sotaque diferente, numa tentativa falha de interceptá-lo.

O jovem só percebeu a dor de um hematoma no braço quando o mafioso tentou segurá-lo. Foi quando ele também se deu conta que estava próximo às ruas proibidas, um quarteirão onde fica a mansão do homem mais poderoso daquela metrópole. Desviou o caminho apressadamente e foi se esconder em um beco, antes de ultrapassar os limites impostos pelo poder e crueldade do patrono do império Ionescu.

Sentou sobre um chão fétido e úmido, roçando um enorme contêiner de lixo imundo. Arregaçou as mangas para verificar o motivo daquela dor que só se intensificava. Percebeu no seu antebraço uma marca que parecia a de uma queimadura. Um sinal parecido como uma cruz, mas com duas barras horizontais. Ele nunca tinha visto algo parecido e momentaneamente não ligou esse estranho sinal ao ocorrido momentos atrás. Estava preocupado demais com sua posição arriscada próxima à casa dos Ionescu’s e começou a espreitar a parede da esquina em busca de uma forma de fugir sem ser visto novamente.

Algumas quadras adiante, uma ou duas viaturas de polícia fizeram barulho o suficiente para ele ouvir e achar que era o momento certo para fugir daquele território. Talvez o corpo do seu amigo fosse encontrado, ele pensou, pois o grito daquela criatura fora ensurdecedor. Era plausível, continuou o raciocínio, que alguém ouvira aquele brado e logo pudera ter ido ao local. Então ele se viu relembrando do ocorrido e voltou a analisar a queimadura. Logo soluçava em lágrimas, recordando os recentes e até os mais graves e antigos crimes que cometera.

A marca latejava em uma dor gradativa, como se estivesse punindo o garoto por todos os seus pecados. Numa espécie de transe ele delirava e, a cada cena que se passava ilusoriamente na parede escura à sua frente, choramingava e pedia perdão. Nem ouviu os passos de um homem que se aproximou e até lhe apontou a arma. Quando o aço frio de uma pistola encostou-se ao seu ouvido, ele já não era a mesma pessoa.

― Vamos, garotinho... Desabotoe minha calça e pegue minha outra arma ― disse o homem, repleto de sordidez na voz.

Com um movimento brusco o garoto segurou violentamente as partes íntimas do homem e usou como impulso para se levantar. A dor mal chegou a ser propagada pelo rosto carrancudo do depravado que já recebera uma forte e selvagem mordida em um dos lados de sua face. Quando o adolescente foi empurrado e, por tal força, jogado ao chão na parte mais adentro e escura do beco, pedaços de carne foram cuspidos, pintando a calçada de vermelho. Com uma das mãos o homem tentou encobrir o rosto que, naquele momento, já mostrava toda a dentição e gengiva de um lado da boca. Com a outra, mirou para baixo, em direção ao garoto que estava caído na bruna.

― Viciado maldito! ―  assim deduziu enfurecido o estranho ato do garoto.

Em um ato de ódio, desferiu todos os tiros possíveis da sua arma até o gatilho pedir mais munição. Uma poça de sangue logo se formou e veio à tona na parte mais iluminada da calçada. A raiva não o fez notar como estranho era aquele líquido. Viscoso e atipicamente escuro, o sangue chegou a não se misturar com os restos de sua face que já estavam rosados no chão. Recobrando a calma, percebeu que precisava sair de cena imediatamente, pois seu chefe não iria gostar nada de saber que houvera um assassinato naquele perímetro tão próximo à sua residência.

† † †

Por mais estranho que pareça, a capital dos pecadores também amanhece. Mas não como qualquer dia normal, não com o típico esplendor de uma cidade comum. A manhã em Arch City é algo cinzento, e não só pelo ar semelhante à fuligem, mas também pela remissão e misericórdia de suas almas. Enquanto a noite liberta todos os seus demônios, o dia esconde seus desejos mais profanos. E como todo inferno tem um rei, foi preciso mais uma noite chegar para que ele reagisse aos últimos acontecimentos.

― Não posso ficar esperando ela vir me atacar... ― dizia impaciente Ionescu.
― Tudo em seu tempo, filho. ― explicou uma velha mulher, na parte sombria da sala de estar da mansão.
― A culpa é sua! Fiz tudo que você mandou, e agora pede pra eu ficar a mercê do destino!? Não posso! Estou cansado! ― dizia raivoso, levantando-se de uma cadeira luxuosa.
― Eu ainda não descobri com qual espécie estamos lidando. Eu preciso de mais tempo para consultar os mortos...
― Não! Não mais, mãe! Chega dessa conversa! Aliás... ― virou-se diretamente para a mulher ― É melhor me dizer agora todo o seu plano e o porquê de tudo isso está acontecendo.
― Contar uma história que você já sabe? Você é meu filho, eu que te criei, eu que...
― Não! Não! Eu quero saber a verdade! Você me usou por todos esses anos... Portanto não ofenda minha inteligência!
― Impossível ofendê-la já que sua ambição o fez usufruir de tudo que lhe fiz e lhe dei.  Você aproveitou tudo que te ensinei! ― a ira na resposta dela fez quebrar várias taças, garrafas de vinho e até parte da ornamentação do lustre ― Muito estranho é agora você declarar que estava sendo usado...
― Não fuja do assunto! Isso não vai funcionar novamente. Você me transformou num monstro... E para quê? Pra nada!?
― Você quis o poder, sempre quis, desde criança... Ou não se lembra mais disto!?
― Não estou reclamando do que sou, mãe... ― explicou solenemente ―  O que me revolta é ter que viver escondido e enclausurado, controlando minha sede, reprimindo meus desejos... Eu quero poder! Quero os poderes que você prometeu!
― Você ainda não fez por merecer!
― Eu matei a garota do jeito que você pediu! Enfiei aquele punhal prateado e a fiz sangrar até a morte... Agora eu quero uma explicação! Quero em troca o que eu mereço, quero o que você me prometeu!
― Mas deixou o irmão dela fugir, não fez o que te pedi por completo. E ainda mandou jogar o corpo da garota no lugar onde menos deveria! ― retrucou enérgica.
― E por que você mesma não fez isso!? Sim, você mesma, já que pode aparecer e sumir em qualquer lugar... Já que é tão poderosa como diz e até fala com os mortos... Então não deveria precisar da mim, não é mesmo!?
― É a verdade que você quer? Tudo bem... Mas espero que você perceba o quanto vai continuar precisando de mim depois de saber tudo. Você desconhece sua própria maldição e nem compreende no que o mundo está prestes a se transformar.
― Mãe, eu sei que devo minha vida à sua compaixão, se é isto que mais quer ouvir de mim. Mas necessito saber quem sou e quem é este demônio que quer me destruir.
― Então sente-se... Você tem uma história de alguns séculos para ouvir. E muito pra saber sobre Libelle...

† † †

A madrugada chegou num estado caótico. Dezenas de restos mortais espalhados pela cidade. Bosques, vielas, lugares não movimentados. Nenhum local parecia seguro. Mas estranhamente aquele rastro de assassinatos parecia seguir uma linha e, aparentemente, para fora dos limites urbanos de Arch City. Cidadãos em desespero alegavam ter visto vultos. Outros pareciam mais incisivos nos depoimentos dados à polícia. Uma mulher e um lobo, estas foram as declarações mais concordantes.

De fato um lobo feroz rondara as cercanias da mansão de Ionescu. O mesmo animal que matou o russo numa noite de ritual maligno, arquitetado por sua mãe, uma bruxa diabolicamente sábia. O próprio licantropo que, segundo a doutrina da Encruzilhada, não deveria ter ultrapassado os limites de sua aldeia. Integrantes da Guarda Contrita se restringem à vigília e caçar unicamente seres ominosos, mas seu odioso desejo foi maior que o dever. A punição foi a mesma na qual todos os lobisomens da história receberam... Serem perseguidos por humanos ou combatidos pelos seus arqui-rivais vampiros.

Ele estava disposto ao perdão do seu bando e ao retorno à aldeia, e foi em busca daquele que teve seu anátema concluído, e agora era um perigo mortal à sua raça e outros seres.

† † †

― Então este lobo que veio me caçar é o mesmo que me atacou naquela noite? ― questionou calmamente Ionescu, depois de ouvir por horas uma longa história.
― Sim. O cheiro de sangue maldito o fez ficar atordoado. Esperei que mais de um viesse te atacar, mas os tempos já são outros... Alguém muito poderoso e influente pode estar à frente da Guarda para ter conseguido controlá-los. ― a bruxa divagou.
― Agora te entendo, mãe. Mas isso não evita ainda de te achar uma mentirosa, dissimulada, maliciosa, aproveitadora... ―  ironizou de forma provocativa.
― Já chega! Eu poderia te dizer o dobro de defeitos que você tem, mas não há mais tempo pra isso. É hora de recuar. Recolha-se daqui para podermos ganhar tempo...
― Tempo? ― respondeu indignado ― Tempo pra quê, mãe? Não sou covarde. Não tenho medo de vira-lata algum, afinal, ele já me matou uma vez, o que poderia acontecer de pior? ― ironizou a situação pelo fato do lobo ter sido usado como parte pra validar o pacto ― Deixe-o vir, agora eu só quero lhe dar o troco...
― Teimoso! Essa insolência ainda vai ser seu fracasso. Eu te contei tudo o que ocorreu aos nossos ancestrais e o que ainda está pra acontecer, e mesmo assim você desdenha da própria sorte. Vai, siga pelo menos mais uma vez os meus conselhos. Acredite, não é do licantropo que você precisa fugir...

† † †

De caçador à caça. Para o lobo, eliminar seres amaldiçoados era a sua sina, mas não esperava ser perseguido por um demônio. Só lhe restou a fuga para aldeia. Lá, mesmo com o acesso proibido para ultrapassar a Encruzilhada, haveria toda uma matilha pra pelo menos afugentar o inimigo em comum. Mas ele não contava com a negação de perdão por parte de seu antigo mestre. E nem imaginava a soberania que exercia o demônio inquisidor que lhe perseguia.

― Enfim, você voltou ― falou serenamente um homem encapuzado surgindo de uma cabana ao longe.

Era uma encruzilhada, mas não uma qualquer. Não há duas estradas ou caminhos que se cruzam. Aqui o que separa quatro regiões distintas são rios. Um rio sagrado para as antigas tribos, de onde várias lendas foram contadas de geração para geração. Mas todas as entidades e criaturas sabem que este lugar é a chegada e a saída, o início e fim de tudo. O eixo, o limiar, o limbo. Uma das representações dos portais do inferno na terra.

― Guardiões, em posição ― o homem prosseguiu, e às sombras de suas costas, algumas dezenas de lupinos com olhos em chamas surgiram.

O lobo pródigo então percebeu, quando atravessou o rio com um salto, que não haveria compaixão. Toda uma matilha rosnava contra ele, prestes a atacá-lo com o sinal de um só comando. Mas de repente começaram a recuar, alguns mais jovens ensejaram até algum princípio de lamento canino. O demônio que lhe perseguia então tinha o alcançado e, surpreendentemente, sua presença estabelecia medo até para um grande bando.

― Estava esperando por esse momento, Libelle. ― caminhando, o homem continuou o diálogo, deixando então o entendimento de que suas primeiras boas vindas não foram para o lobo traidor.

Com um gesto de abrir de braços, a matilha se dispersou de forma circular, e os que estavam nos elos finais encostaram à beira do rio, quase como um convite para que aquela jovem mulher, vestida em trapos, adentrasse ao círculo. Com um cajado que parecia duas espadas acopladas por empunhaduras prateadas, fez um risco vertical no chão, de alguns centímetros a sua frente até chegar junto a seus pés. O curso do rio cessou proporcionalmente ao movimento daquele homem enigmático, complementando o convite pra que ela ultrapassasse a barreira.

― “Regozijai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia perdido. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos, que não necessitam de arrependimento”, assim Ele disse ― o homem citou o divino livro e riscou o cajado mais uma vez no chão da aldeia, com um traçado em direção ao lobo arrependido, que subitamente se submeteu a uma mutação monstruosa, e ficara grande e forte como nenhum outro jamais havia se transformado.

Um uivo ameaçador ecoou por toda redondeza, calando até o menor e mais insignificante dos insetos. A garota começou a andar de forma sutil sobre a trilha exposta pela paragem do rio, atravessando suave com a leveza daquele corpo aparentemente frágil. Adentrou o semicírculo, que agora se fechara ao encontro dos dois lobos que estavam nas extremidades. Ela parou e finalmente fitou de forma ereta o oponente.

Trovões e uma chuva forte caíram sobre o lugar. O vento gélido e cortante esvoaçava seus cabelos negros azulados à frente do rosto, que agora expressava um semblante perturbador com aqueles olhos oblíquos, vermelhos como brasa. Ela iniciou outros pequenos e lentos passos em direção à fera que, mesmo sentindo-se tão grande e forte, jamais tinha visto um ser tão destemido. Os uivos não foram suficientes para intimidá-la.

― Ulloriaq, você está perdoado ― recitou solenemente, como uma autorização para que se iniciasse o duelo.

Depois de receber o perdão e indiretamente a ordem para atacar, o grande lobo aguardou a garota entrar no seu raio de ação para, quem sabe, destruí-la com um só golpe. Mas o caminhado dela ficaria mais maçante, ficando perceptível a todos que, a cada passo, pequenos pedaços de sua pele recaíam sobre a terra molhada. Entendendo aquilo como fraqueza, Ulloriaq viu uma oportunidade e logo partiu em velocidade para atacá-la.

― Não vai demorar muito... ― o homem a assistir o embate sussurrou com certo sarcasmo, continuando a certa distancia, pressentindo os acontecimentos a seguir.

Um grande impacto se deu quando o lobo saltou sobre Libelle e a derrubou, jogando-a para longe. Neste mesmo movimento ele ainda conseguira dilacerar parte do ombro dela com suas gigantescas garras. Ulloriaq se preparava para lançar-se ao ataque novamente, quando ela ficou numa posição parecida com a de qualquer outro animal indefeso. O lobo titubeou pelo estranho estado aparente de fraqueza, e então resolveu se aproximar cautelosamente.

Um estrondo explosivo foi visto por toda a alcateia. O corpo de Libelle se dividiu em pedaços que se espalharam no ar. Várias partes alcançaram os lobos, causando euforia entre eles para abocanhar alguma porção. Aqueles que conseguiram não demoraram pra perceber que não foram sortudos. A carne ressecada se transformara em um pó amargo, causando dor aos que mastigaram e desfalecimento aos que ingeriram. O ocorrido aconteceu tão rapidamente que Ulloriaq ainda não tinha notado um corpo deitado à sua frente, afundado centímetros suficientes para ficar imperceptível em meio a lama.

Libelle levantou-se já em novo corpo. Com tamanho e peso maior, agora estava à altura do grande lobo. Um tanto confuso, não restou outra opção pra Ulloriaq que não fosse investir mais uma vez contra ela. Mas pecou em repetir o golpe. Ao vê-lo dar novamente um grande salto em sua direção, Libelle deu uma rápida corrida para frente e, antes de ficar abaixo do inimigo indefeso no ar, puxou-lhe as patas para baixo, o suficiente para deslocá-lo do campo gravitacional. A conseqüência deste contra ataque foi a violenta queda de Ulloriaq, que se contorceu em dor por demorados minutos, com vários ossos quebrados.

A essa altura o restante da matilha já se apegava ao lobo e alguns até, por instintos coletivos, ameaçavam interferir a luta. Por confiança de que isso não aconteceria, ou pela tranquilidade de intervir caso precisasse, ou quem sabe até, pela certeza que o resultado não mudaria caso Libelle tivesse que enfrentar mais de um adversário, o homem continuou sem nada fazer. O fato é que, mesmo em grande número, o bando tinha já visto o suficiente para temer aquele demônio.

Com o corpo tão ferido quanto o orgulho, Ulloriaq tentou um ataque terrestre, investindo suas presas nas pernas da adversária. Libelle aguardou até o momento em que seu braço esticado tocasse a cabeça do lobo, já baixa pelo golpe, e pudesse impulsionar seu corpo para o alto. No ar, ela girou horizontalmente em seu próprio eixo e, ao descer, esticou a outra mão alcançando suas afiadas unhas no quadril de Ulloriaq. Era a parte do corpo onde ele tinha uma espécie de marca, uma estrela, na qual fazia alusão ao seu nome indígena.

O sinal havia desaparecido do corpo do animal. Libelle tinha arrancado aquele pedaço de pele, deixando Ulloriaq com um forte ardor na carne vivamente exposta. Ela jogou aquela parte do couro cabeludo no chão, à frente do inimigo, e desta vez resolveu iniciar o revide. Mas sem investida, sem pulos, sem avanço. Elevando suavemente os dois braços, fez o lobo erguer-se involuntariamente, como um bípede, torturando articulações e dilacerando alguns músculos. Ulloriaq já gemia e foi acompanhado de uivos de lamentação por parte dos demais no círculo. Sem piedade, Libelle abriu agressivamente os braços, em posição de cruz, o que acarretou no deslocamento de todo corpo esquelético de Ulloriaq.

Um choro melancólico para um fim ainda mais triste. Em pouco tempo o lobo viria a falecer. O que se espera numa situação destas é um golpe de misericórdia pra dissipar honradamente o sofrimento de um oponente. Mas isto não viria a ocorrer, embora Libelle estivesse já se preparando para tal. A matilha a cercou, prestes a atacá-la.

― Guardiões! ― o homem deu um grito de comando com expressivo tom de reprovação para aquela atitude dos lobos ― Afastem-se! Ela não é a nossa inimiga. Ouçam... ― se aproximou um pouco mais dos membros de sua guarda ― Vocês, irmãos de Ulloriaq, tiveram uma grande lição aqui. A Guarda serve à Santa Ordem, guardiã da Encruzilhada. Suas vidas humanas foram falhas, desprezíveis, abomináveis. Vocês são apenas cães de guarda e eis a prova do que acontece para aqueles que cometem os mesmos erros do passado. Os seus verdadeiros inimigos planejam um grande ataque aos humanos e isto poderá ocorrer muito em breve. Mas só quando esse dia chegar é que o limite da aldeia estará livre para vocês os capturarem! Esta criatura em nossa frente é um castigo divino, a mão esquerda de Deus, a justiça punitiva. Vai e cumpra sua tarefa... ― direcionou-se para ela em tom mais baixo e respeitoso.
― Não sou isso que você diz... Meu nome é Jessica... Só voltei pra proteger meu irmão... Quem é você? ― questionou com dificuldades, adaptando-se a mais um novo corpo.
― Eu sou Amziel. Aquele que te resgatou do reino das trevas e que te invocou para uma sagrada missão. Você é a libélula negra dos jardins secretos, que virá para livrar o mundo da escuridão. Seu nome é Libelle...